quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Haruki Murakami


«Fui até ao jardim, levantei a tampa do poço e espreitei. Lá dentro reinavam as mesmas trevas profundas de sempre. Conhecia agora muito bem o poço, como se fosse uma extensão do meu próprio corpo: a sua escuridão, o seu cheiro, o seu silêncio haviam-se convertido numa parte de mim. Num certo sentido, conhecia melhor o poço do que conhecia Kumiko. Era evidente que bastava fechar os olhos para me recordar dela, de cada pormenor do seu rosto, do seu corpo, para trazer à memória os seus gestos, a sua maneira de andar. Tinha vivido seis anos com ela na mesma casa. Ao mesmo tempo, porém, tinha a sensação de que havia coisas que diziam respeito a Kumiko que era incapaz de recordar com nitidez. Ou, se calhar, não estava assim tão certo das minhas recordações.

(...) Passava das onze quando, não arranjando mais nada em que pensar, desci pela escada até ao fundo do poço. Como de costume, enchi os pulmões de ar, para verificar a atmosfera: era a mesma de sempre, cheirava a mofo, mas dava para respirar. Às apalpadelas, pus-me a procurar o taco que tinha deixado encostado à parede. O taco não estava lá. O taco não estava em lado nenhum. Tinha desaparecido sem deixar rasto.

Sentei-me no chão, no fundo do poço, e encostei-me à parede. Suspirei várias vezes. Eram uns suspiros vazios, sem ponta de esperança, como o vento que sopra caprichosamente atravessando por entre vales áridos e sem nome. Depois de ter suspirado tudo, esfreguei as bochechas com ambas as mãos. Quem poderia ter levado dali o taco? Canela? Era a única possibilidade que me vinha à ideia. Mais ninguém sabia da sua existência, e só ele poderia descer ao fundo do poço. Por que carga de água se lembraria Canela de levar o meu taco? Decididamente, era uma coisa que não conseguia compreender - melhor dizendo, era apenas uma das muitas coisas que eu não conseguia compreender.

Não tinha outro remédio senão passar sem o taco. Não havia de ser nada. Vendo bem, o taco não passava de uma espécie de talismã protector. Mesmo sem ele, de certeza que ia correr tudo bem. "Da primeira vez também não tive problema nenhum para chegar até aquele quarto quarto sem levar protecção, pois não?", pensei para comigo mesmo. Depois de me convencer a mim mesmo, puxei a corda e fechei a tampa do poço. A seguir entrelacei os dedos das mãos em torno dos joelhos e fechei lentamente os olhos no meio da escuridão profunda.»

in "A Crónica do Pássaro de Corda"

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