quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

«Sem merda, nada feito»


O ultimo livro do MEC não defrauda os seus leitores. Faz jus ao já longínquo, mas excelente, “A Causa das coisas”.

Desta feita, temos um conjunto de crónicas à volta da comida portuguesa, dos portugueses que a comem, de como o fazem, do que sentem quando o fazem… E tudo isto com a qualidade de edição que a Assírio & Alvim nos tem habituado.

Aqui fica um excerto da primeira crónica, sugestivamente intitulada Sem merda , nada feito.


[...] A verdade — e não sei de uma maneira elegante de exprimir isto — é que a merda e a comida estão intrinsecamente ligadas. A merda é adubo — é comida de plantas e de bichinhos. A razão da existência de amêndoas-doces, por exemplo, está mais do que provada.

Há milhares de anos só havia amêndoas amargas. Os bichos provavam e cuspiam. Mas, quando aparecia uma doce, comiam. E, tal como comiam, acabavam por cagar. A semente acabava assim por sair para o mundo e ser acomodada num montinho simpático de merda que a nutria. Resultado: cada vez as amêndoas mais doces singravam. Assim aconteceu com muitas plantas. Por uma selecção natural, as saborosas nasceram num infantário de merda, enquanto as amargas foram cuspidas para um desértico celibato.

Negar ou desfazer esta ligação essencial entre o que se come e o que se caga é pôr em causa a própria natureza humana. Deixar de comer muita fruta só por que produz imenso gás (coisa que os fascistas sanitários nunca mencionam) é tentar fugir, estupidamente, ao ciclo da vida. O elo entre a boca e o cu não só merece atenção — merece respeito.

O que me traz aos ovos. Hoje em dia é proibido mencionar que as galinhas têm cu — mas têm. É por onde saem os ovos, desculpem lá. Entre gastrónomos avançados, os ovos com tracinhos de merda na casca são avidamente comprados por cinco vezes mais do que o preço habitual dos ovos lavados, carimbados, pasteurizados. As galinhas comem merda; como comem os porcos; como comem as santolas.

Claro que faz nojo — mas é um nojo moderno, que se deve resistir. Os melhores limões que já provei, criados pela mãe da minha cunhada Xana, sogra do meu irmão Paulo, são criados exclusivamente com caganitas de cão. Há coisa mais limpinha do que um limão? Não, não há. Quem não compreender a relação íntima entre o cagalhão e o limão não percebe nada. [...]


Em Portugal Não se Come Mal
Miguel Esteves Cardoso
Assírio & Alvim

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