sábado, 25 de outubro de 2008

Valsa lenta

José Cardoso Pires (2.10.1925 - 26.10.1998)

Já passaram 10 anos desde que morreu. Deixou-nos uma obra não muito vasta, mas de excelência. A sua vida boémia, da rua e da noite, resultou em experiências que reflectiu em alguns dos seus textos. O livro «Alexandra Alpha» (pouco conhecido, injustamente) talvez seja o melhor exemplo.

A sua obra-prima é, no entanto, o livro «O Delfim». Livro quase perfeito, onde se assiste à depuração extrema da escrita. Sem palavras a mais nem a menos. Como só ele sabia fazer. De uma austeridade notável, o livro é o exemplo da essencialidade da sua escrita. A ler, ou a reler. Em voz alta.

Todos os anos o mar rasga a membrana de areia que corta a linha das dunas, insinua-se nela, penetra por esse corredor e carrega sobre a lagoa, fecundando-a de vida nova. O ventre amplo, ventre macio forrado de lodo, revolve-se, transborda, mas, passado o ímpeto, povoa-se de pequeninas centelhas de cauda a dar a dar e a lagoa fica majestosa e tranquila como um odre luminoso de peixes abandonado no vale, entre pinhais.

Um viajante que ponha o dedo no mapa do Automóvel Clube e percorra o litoral vai encontrá-la, mais quilómetro menos quilómetro, entre a linha azul do oceano e as manchas acastanhadas dos montes. Se for caçador, melhor, menos a esquece, porque tem um desenho inconfundível: o contorno de uma pata de ganso espalmada sobre o papel (o que me leva a imaginá-la como gerada há milhões de anos por um gigantesco animal voador que, no regresso de outros continentes, tivesse tocado a terra naquele ponto e a afundasse, fazendo brotar água. Um mito? Paciência.


«O Delfim» (excerto)


Retrato de José Cardoso Pires, a tinta da china, por Júlio Pomar, 1949

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