quarta-feira, 4 de março de 2009

As mãos são as folhas dos gestos

«[...]
Há por aqui, no lugar onde moro, um sem-abrigo de que gosto. Conversamos bastante. Gesticula e as mãos são as folhas dos ramos dos seus braços, lá na ponta, a tremerem. Uma destas semanas dei com ele a dançar no passeio, com um sorriso enorme. Disse, ao cruzar-me com ele
- Estou-me a cagar.
e continuou o seu bailado, sozinho, lá para trás. Não me pediu cigarros nem dinheiro: estava a cagar-se. Não tornei a vê-lo e pergunto-me por onde andará agora que é inverno, faz frio, chove muito. Não o acho debaixo de cartões e trapos, numa arcada, num degrau. Desconheço como se chama. Trata-me por
- Amigo
trato-o por
- Amigo
e é tudo. Espero que continue a cagar-se. Se eu conseguisse dançar com ele, como ele. Ao longo da vida tenho coleccionado pessoas assim. A noite neste bairro é dura, marginais, prostitutas, o rol inteiro. Uma ocasião abraçou-se a mim a chorar, numa altura em que não estava a cagar-se. Sofria como um cão. Lá arribou com umas cervejas, uns cigarros. De cabelos compridos, barba. Nunca lerá isto, nunca saberá que falei dele. Disso tenho pena. Gostava que esbarrássemos de novo
- Amigo
esperar que do fundo da barba me chegasse o seu
- Amigo
primeiro baixinho, depois a engrossar
- Amigo
perguntar-me
- Tem uma moeda por acaso?
na certeza que eu tinha uma moeda por acaso e lha ia dar por acaso. O que lhe sucedeu, amigo? E de novo a dança, de novo o sorriso.
- Estou-me a cagar
e eu a cagar também, caminhando os dois, rua fora, até ninguém nos ver, deixando aquele que escrevia, o António Lobo Antunes, a olhar para nós, a meter a chave à porta e a instalar-se, de cotovelos na mesa e mãos no queixo, diante de um tampo vazio.»

Crónica (excerto) de António Lobo Antunes, Visão (19 a 25 de Fevereiro 2009)
Vou à procura do amigo do António Lobo Antunes e dizer-lhe que me sinto solidário com ele, que também eu estou a cagar-me para aquilo que as pessoas pensam. Apenas ainda não consigo dançar no passeio...

2 comentários:

Abssinto disse...

E é em crónicas como estas que o A.L.A. é superior no que faz! Existem mendigos tão coerentes! loucos felizes, parecem até. E dançam no passeio:) Como o Joe Gold, mas esse imitava gaivotas..

Rui Sousa disse...

De facto. As crónicas são, na sua grande maioria, maravilhosas.

E ele gosta do tema "loucura".

Como escreveu Marcel Proust na sua obra-prima: "Para tornar a realidade suportável, todos temos de cultivar em nós certas pequenas loucuras".

No que me diz respeito, faço a min ha parte :-)))

Joe Gold imitava gaivotas? LOL, não sabia... Foi concerteza feliz!