segunda-feira, 27 de abril de 2009

A Divina Miséria: pré-publicação


«Capítulo Primeiro

COMO SABE, SENHOR, A MORTE DE UM HOMEM É SEMPRE UMA DESORDEM INFINITA. OS OBJECTOS QUE ATÉ então lhe pertenciam ficam desde logo sem préstimo nem função para a vida; caem no torpor e no atordoamento – vagos, sem utilidade, sem alma. Falta-lhes o movimento, o sangue, o calor das mãos que os usavam. Falta-lhes o tempo, a idade, a saúde para que foram criados. Sobretudo, senhor, falta-lhes o ser. A própria matéria reduz-se à sombra que lentamente arrefece e depois se extingue nos quatro cantos da casa – que acaba também por esmorecer e mudar de cor. Nela, o ar torna-se irrespirável; o sol, desnecessário, oblíquo. E tudo se apaga, tudo deixa de ser real. A razão de ser das coisas não reside na sua natureza material, mas antes na metafísica existencial, que é a explicação de todo e qualquer objecto; ela como que emerge do fundo da sua própria extinção, da ausência dessa luz que lhes vinha animando a existência.

Digo-o, senhor, porquanto claramente vi que os espelhos do vestíbulo, ao receberem o sopro derradeiro e o suspiro da sua agonia, se aveludaram de bagas de humidade – como se o alento do morto tivesse voado ao encontro deles nesse mesmo instante – e deixaram de ser os olhos discretos da casa. A memória do defunto evadira-se-lhe do corpo. Estava sendo como que amarrada aos aspectos ignorados do mundo que fora o dele, mas que agora nos parecia estranhamente distante, inerte, à beira do vazio. Como se dali o tivessem varrido os ventos loucos do esquecimento.

Eu nunca estivera antes na casa do padre, compreende o senhor? Não tinha vida nem estômago para isso. Era, nesse tempo, um homem de mil ofícios e caminhos. O mundo sobrevivia, sabe como e porquê? Ora, porque eu o desratizava. Subindo e descendo, por ladeiras e estradas, essas aldeias todas do Nordeste, tocava o meu realejo à entrada da rua principal, vinham logo bandos de homens e mulheres a correr ao encontro dos meus serviços. Via-se-lhes nos olhos as vidas carregadas de pobreza e de uma tristeza sem remédio. Ou tinham tulhas cheias dessas pragas de murganhos que eu devia exterminar, ou traziam-me facas e tesouras e alfaias agrícolas a afiar à lima, ao esmeril, até à lixa grossa; ou então apresentavam-me guarda-chuvas com varetas e molas partidas, e outras ferramentas a precisarem de um conserto destas minhas mãos de mecânico de tudo e mais alguma coisa. Amolava enxós, serras, serrotes, ferros de arado, foices de ceifar trigo ou roçar silvas, o inferno em peso a passar-me pelos dedos. As pessoas pediam-me que lhes fizesse recados e chamadas telefónicas intercontinentais, que lhes levasse cartas para o correio e desse voltas e voltinhas por elas na Vila, à cata de papéis e encomendas, em diligências e estúpidas demandas junto da câmara municipal e do notário. Pagavam-me por isso o que entendiam ou bem podiam. Mas nunca me faltou trabalho, porque a verdade é que não havia em todo o concelho do Nordeste um desratizador como eu. Armava ratoeiras em tudo quanto fosse sítio de ratos: arribanas, cafuões de milho, armazéns de frutas, sótãos onde se vazavam o trigo, a fava, a batata-doce e a comida de Inverno para o gado. As casas ficavam presas e reféns das minhas armadilhas, tal qual o peixe miúdo numa malha entre as rochas ou os pássaros nas redes que eu lançava entre o canavial – enquanto ia amolando tesouras de costura, limando facas de cozinha ou rachando lenha para o lume. Depois ia ver as minhas ratoeiras. Os bichos agonizavam às centenas, espichados pelas duras molas desses meus engenhos, dando à cauda e às patas no ar, os olhos alucinados e as línguas de fora. Abria-lhes então uma boa cova no quintal, ajudava-os a morrer por misericórdia e enterrava-os às pilhas e mais pilhas, para que o mundo ficasse limpo e salvo de semelhantes pragas. À boca de Outubro ou de Novembro, consoante o tempo se anunciasse para a próxima estação, tornava-mecarvoeiro. Trabalhava numa furna inventada por mim, espécie de forno abafado, com controlo de fumos e calores, onde a lenha ardia da noite para o dia por sua conta e risco, até o fogo se extinguir por si e as achas se converterem em grandes troços de carvão que eu vendia a peso ou a saco para o tempo frio. Já por aqui se vê, senhor: com uma vida destas, como ia eu ter tempo e paciência para padres e missas? Agora! Razão por que, como lhe disse, nunca tinha estado antes naquela casa.»
A Divina Miséria, de João de Melo (Dom Quixote)

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