quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O silêncio da noite

Durante muito tempo fui para a cama cedo. Por vezes, mal apagava a vela, os olhos fechavam-se-me tão depressa que não tinha tempo de pensar: «Vou adormecer.» E, meia hora depois, era acordado pela ideia de que era de tempo de conciliar o sono; queria poisar o volume que julgava ter nas mãos e soprar a chama de luz; dormira, e não parara de reflectir sobre o que acabara de ler, mas tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto especial; parecia-me que era de mim mesmo que a obra falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V. Esta crença sobrevivia alguns segundos ao despertar; não me chocava a razão, mas pesava-me nos olhos como escamas, e impedia-os de verificar que a palmatória já não estava acesa. Depois começava a tornar-se-me ininteligível, tal como, após a metempsicose, os pensamentos de uma existência anterior; o assunto do livro soltava-se de mim, e ficava livre de me adaptar ou não a ele; logo recuperava a vista, e ficava muito admirado de encontrar em meu redor uma obscuridade, doce e repousante para os olhos, mas talvez ainda mais para o espírito, ao qual se revelava como coisa sem causa, incompreensível, como coisa verdadeiramente obscura. A mim mesmo perguntava que horas poderiam ser; ouvia o apito dos comboios que, mais ou menos afastado, como o cantar de um pássaro numa floresta, acentuando as distâncias, me descrevia a extensão dos campos desertos onde o viajante se apressa para a próxima paragem; e o estreito caminho para onde segue vai ficar-lhe gravado na memória pela excitação que deve a lugares novos, a actos inusitados, à conversa recente e às despedidas à luz do candeeiro alheio, que o acompanhavam ainda no silêncio da noite, à doçura próxima do regresso.


Marcel Proust
Em busca do tempo perdido (volume I) - Do lado de Swan [excerto]
Tradução de Pedro Támen
Edição Relógio de Água

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