quinta-feira, 30 de julho de 2009

O mar lá ao fundo

Ela acorda numa casa vazia, levanta-se devagar, porque também o seu dia é longo e por nenhuma coisa preenchido. Sua vida quebrada ao meio. O homem que ela amava estava morto, e não seria jamais seu filho. Seu ventre enorme vagueando pela ca­sa. O estirador vazio, o trabalho abandonado. As faces pálidas, olheiras fundas, todos os graus do cansaço — é preciso descan­sar, diziam. Um filho esperando no escuro pela sua hora de nas­cer. A cama desfeita, um rosto, uma boca tão perto que não saberia exactamente o momento em que ele começara a beijá-la, a quentura de um corpo, o amor nos dias claros, luz agressiva re­cortando ferozmente os objectos, palavras abertas, como gritos, ele desmanchando-lhe os cabelos, os olhos, os braços, a boca, ela sendo arrastada, apenas arrastada, é uma viagem sem regresso, soube, e aquela ansiedade que não iria acabar depois nunca, fora entre as árvores passos caminhando, um corpo, a luz esbatida entre as folhas e o cheiro inquietante dos loendros, sobre a mi­nha cabeça um qualquer voo, a sugestão adivinhada de um voo, mas não é possível nunca ter certezas, se eu for ver à janela co­meçarei a duvidar, e no entanto o som dos passos é cada vez mais perto, se eu não abrir os olhos nunca alguém acabará por abrir aquela porta, mas quando eu for ver terá sido apenas o vento, e no entanto os passos são audíveis, fora entre as árvores, indo e vindo e agora outra vez mais longe, recuando para dentro da sombra, e se eu for ver é só o céu, o vento, as folhas oscilantes das árvores, senta-se diante do estirador e continua a desenhar as casas, mas o lápis salta sobre a régua, a folha de papel resvala de repente, as suas mãos não têm força e os olhos não vêem nítido, uma pausa para preparar um café quente na cozinha, regressa com a chávena e olha o prédio fronteiro, levantando a cortina, no décimo andar há uma árvore pintada a branco no vidro, no séti­mo andar uma criada lava a janela com um pano verde enrolado em volta da vassoura, estende o braço a toda a largura do caixi­lho e alcança a custo a outra parte da vidraça, no décimo andar e no décimo primeiro e de súbito em quase todos os outros havia criadas lavando as janelas com vassouras, não sabiam certamente [...]

Teolinda Gersão, “Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo” (excerto)

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